A PAIXÃO DE ERINE
Quando Erine deu aquela esbarrada, espalhando papéis no calçadão da Rua das Flores, não tinha a menor idéia do que estaria por vir. Sotaque húngaro carregado, Ferenc derreteu-se em desculpas estapafúrdias naquela manhã cálida do verão curitibano. Ajeitou a pasta e, refeita do contratempo, jogou contrariada um “não foi nada!”, visivelmente rústico. Olhou rapidamente o rosto quadrado, másculo. Algo inesperado aconteceu. Encararam-se mudos, durante uma fração de vida. Erine vagou pelas feições gentis, amáveis. Sentiu os olhos penetrantes a despir seu coração. Ferenc arrepiou-se com a imagem delicada e ao mesmo tempo decidida de Erine. Ninguém consegue imaginar o que se passa nos subterrâneos dos labirintos humanos, muito menos compreender a fonte dessa eletricidade cósmica que pulsa por tão breve instante. Recompôs a marcha. Afinal já estava atrasada. Intempestivamente, porém, como se não comandasse seus atos, fez o que nunca havia feito. Virou-se. Por que fazia aquilo? Que origem tinha aquela força a contrariar sua personalidade, sua educação? Ele estava lá. Embasbacado, paralisado, boca semi-aberta, braços largados. Novamente os olhares trocaram confidências profundas. Transtornada com a própria atitude, retomou a caminhada envolvida num turbilhão de calores. Final da tarde. Impulsionada por vontade espúria, voltou pelo mesmo trajeto. Misturava raiva desconhecida com esperança infantil de encontrá-lo. Depois de alguns segundos, parada, a revistar todos os cantos com olhar angustiado, caiu em si, sentindo-se imbecilizada, infantilizada. Passos firmes, até barulhentos, seguiu em frente. Em casa, isolou-se. Comeu pouco. Fechou-se no escritório. Rolou na cama madrugada adentro. Intrigou filhos e marido. Dia seguinte repetiu o roteiro devagarinho, pensando sincronizar o tempo. Passar exatamente no mesmo lugar, no mesmo momento. Caminhava cabisbaixa, começando a pensar novamente na bobagem do gesto. Ergueu a cabeça. Estancou o passo. Ali, a poucos centímetros, um sorriso. – Ainda estarrr brrava com eu? Passearam, conversaram, gastaram vida. Passou a sair cedo e voltar muito tarde. E isto não tinha relação com excesso de trabalho, mas com o forasteiro a sacudir a rotina, a desarrumar hormônios. Chico, garçom da lanchonete, única testemunha dos encontros. A mesa do fundo ficava sempre reservada naquele horário. Pediram segredo absoluto. Ele aquiesceu profissionalmente. Tornara-se bom amigo. – Você viu Ferenc, Chico? – Desculpe. Ferenc? Não conheço! Desconcertada, insistiu: – Que é isso, Chico? Ferenc! O estrangeiro que faz lanche toda tarde aqui comigo... Você está louco? – Não me lembro de nada disso! E meu nome não é Chico, é José, mas me chamam de Zé. Quer mais alguma coisa?
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